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Tem horas em que eu olho para o mundo ao meu redor e fico com a impressão de que alguém apertou o botão errado no painel de controle da humanidade. A gente repete por aí que vive na era mais livre da história, que agora cada um pode ser o que quiser, trabalhar de onde quiser, consumir o que quiser. Mas, quando olho com calma, sem o véu brilhante das telas, parece que estamos mais parecidos com aves que nasceram em gaiolas de vidro: elas juram que estão voando, mas só estão batendo asas contra os limites invisíveis que alguém desenhou por elas.
E esse alguém, convenhamos, não é um tirano barbudo com capa vermelha. São algoritmos. São feeds infinitos. São notificações que piscam como pequenas sirenes prometendo atenção fácil. A tal liberdade moderna virou uma coleira macia. Não aperta, mas puxa.
A geração do TikTok, então, é talvez o retrato mais claro dessa mutação lenta e silenciosa. Um tipo de fábrica de ruídos onde todo mundo dança, aponta para frases flutuantes na tela e repete as mesmas opiniões embaladas como se fossem descobertas próprias. Nada contra a criatividade, mas é difícil chamar de liberdade um ambiente que recompensa quem se dobra ao ritmo frenético de quinze segundos. E ironicamente, quinze segundos são suficientes para dobrar até o caráter de alguém.
O mundo ficou rápido demais. E quando tudo acelera, o pensamento desacelera. É quase uma lei da física social. A pessoa desliza vídeos com o polegar como quem reza para não ter que ficar sozinha com a própria mente. Não porque pensar seja difícil, mas porque pensar exige silêncio. E o silêncio virou artigo de luxo.
Em teoria, somos livres. Na prática, vivemos como se alguém estivesse sempre soprando no nosso ouvido: consuma, role, clique, reaja, compartilhe. E o mais curioso é que ninguém percebe o quanto isso molda o cérebro. Como se criássemos um tipo de TDAH artificial, uma hiperfragmentação da atenção que não nasceu conosco, mas foi instalada como quem instala um aplicativo. As pessoas pulam de vídeo em vídeo, como se a própria vida fosse um carrossel mal regulado. Quanto mais gira, mais elas perdem o eixo.
E a consequência disso aparece no detalhe. Anos atrás, as redes sociais eram vitrines. As pessoas postavam para se mostrar, para validar as próprias conquistas, para criar uma narrativa de si mesmas. Hoje, paradoxalmente, estão postando menos. E consumindo mais. É como se algo tivesse quebrado na cultura. As pessoas perderam não só a vontade de se expressar, mas a capacidade de organizar pensamentos suficientemente profundos para serem compartilhados. Viraram expectadoras em vez de protagonistas.

E isso não é só comportamento. Isso é sintoma.
Pensa comigo: se alguém passa três horas por dia imerso numa sequência ininterrupta de estímulos curtos e emocionalmente manipulados, quando essa pessoa vai ter tempo de construir uma opinião própria? Como ela vai debater, discordar, criar, ousar? Não vai. Vai repetir. Vai absorver. Vai descer pelo ralo do algoritmo achando que está nadando numa piscina de cultura.
É cruel. E é brilhante. Porque o algoritmo nunca dorme. Nunca cansa. Nunca hesita. Ele aprende cada suspiro do usuário e devolve exatamente o que prende, nunca o que liberta.
E o engraçado é que ninguém precisou assinar contrato algum para perder essa autonomia. As pessoas entregaram isso espontaneamente, sorrindo, achando engraçado, achando prático. Uma geração inteira educada pela cadência dos vídeos curtos, pelo humor raso e pelo vício neurológico da recompensa instantânea. A própria noção de paciência virou peça de museu.
E quando a paciência morre, morre junto a profundidade.
Morre a capacidade de concluir raciocínios longos.
Morre a habilidade de enxergar nuances.
Morre até a sensibilidade para perceber o óbvio: a vida real não cabe em quinze segundos.
A gente fala muito sobre tecnologia ampliar a liberdade humana. E ela pode. Claro que pode. Mas, do jeito que está sendo usada, parece mais uma coleira dourada. Uma coleira que brilha, apita e vibra no bolso. Uma coleira que faz você se sentir especial enquanto te mantém exatamente no espaço que alguém mapeou para você.
A grande ironia é que quanto mais distraídos ficamos, mais manipuláveis nos tornamos. E quanto mais manipuláveis, menos livres. Uma liberdade ilusória é sempre mais perigosa que uma prisão declarada, porque pelo menos a prisão você identifica. A distração não. Ela se disfarça de entretenimento, de descanso, de direito, de forma de pertencimento.
E eu não estou falando isso como quem aponta o dedo para o mundo. Estou falando como alguém que enxerga o que está acontecendo e se recusa a fingir que está tudo bem. O preço da distração permanente é alto demais. Ele custa nossa atenção. E atenção é tudo que temos. É a moeda da consciência, é o filtro do mundo, é o que define quem nós nos tornamos.
Se você perde sua atenção, perde sua essência.
Perde sua capacidade de decidir.
Perde até seu desejo de ser algo maior do que a própria distração.
No fim das contas, a pergunta não é se estamos mais livres. A pergunta é: conseguimos passar dez minutos pensando em uma única coisa sem fugir para uma tela?
Se a resposta for não, então talvez a liberdade tenha virado apenas mais uma palavra bonita usada para disfarçar o fato de que estamos sendo treinados, educados e moldados por máquinas que nos conhecem melhor do que nos conhecemos.
A liberdade verdadeira nunca foi sobre poder fazer tudo.
Sempre foi sobre poder escolher onde colocar sua atenção.
E isso é justamente o que estamos perdendo.
Texto Original: Lizandro Rosberg