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Há momentos em que a economia de um país escancara um paradoxo que não cabe mais nas explicações tradicionais. O Brasil vive exatamente isso. Há vagas, há demanda crescente, há empresas ampliando capacidades produtivas, mas falta mão de obra em áreas essenciais. Não é apenas um descompasso entre oferta e demanda. É um descompasso entre modelos de vida e modelos de trabalho. Uma fricção estrutural que se intensificou desde a pandemia, mas cujas raízes são muito mais profundas.
Durante décadas, acreditamos que o dilema brasileiro era a falta de empregos. Subitamente, o país se viu diante do inverso. Indústrias, varejistas, hospitais, logística, tecnologia e serviços gerais relatam dificuldade em preencher posições básicas. Para atrair trabalhadores, empresas ampliam benefícios, flexibilizam horários e até tentam ressignificar jornadas desgastadas, como o 6×1, sempre polêmico quando associado a salários baixos e deslocamentos longos. A sensação recorrente nas entrevistas internas é de que “ninguém quer trabalhar”, mas quando olhamos com atenção, percebemos que ninguém quer trabalhar nesses moldes.
Há um desalinhamento civilizatório. Não é só o salário. É a arquitetura inteira do trabalho brasileiro que parece projetada para uma época que já não existe. A frase de Peter Drucker, “o maior perigo em tempos de turbulência não é a turbulência, mas agir com a lógica do passado”, encaixa-se perfeitamente no cenário atual. O Brasil tenta resolver uma falta de mão de obra do século XXI com incentivos do século XX: vale-refeição mais gordo, bonificação, transporte e cesta básica. Tudo isso ajuda, mas não responde ao ponto central.
O problema estrutural está na simetria quebrada entre esforço e horizonte. O trabalhador médio olha para 30 anos pela frente, observa o salário achatado, percebe a dificuldade de ascensão real e conclui que está preso a um modo de vida que consome energia sem construir futuro. Ninguém deseja viver assim.
Esse desalinhamento criou duas reações simultâneas. Uma massa crescente migrou para o trabalho autônomo, vendo em aplicativos, freelancing, dropshipping, marketing digital e serviços independentes a chance de comandar o próprio tempo. Outra parte simplesmente recuou, aceitando empregos apenas quando estritamente necessário, reagindo ao mercado de forma intermitente.
Enquanto isso, as empresas se perguntam por que o Brasil, um país historicamente abundante em força de trabalho, agora parece desertificado em determinadas áreas. A resposta é desconfortável, mas real: não falta mão de obra. Falta um pacto renovado sobre o sentido do trabalho.
A jornada 6×1 se torna o símbolo dessa tensão. Não é apenas a prática em si que gera polêmica, mas o que ela carrega. Um país de dimensões continentais, com deslocamentos diários que ultrapassam duas horas, salário que não compensa a corrosão do tempo e ausência de perspectivas reais de melhoria pessoal transforma o 6×1 em algo quase inviável para uma geração que cresceu testemunhando burnout, precarização e ascensão limitada. Essa geração sabe que o melhor do mundo não está disponível para quem trabalha até se esgotar. A produtividade não cresce por horas acumuladas, mas por condições mentais e tecnológicas que libertam o potencial humano.

Ao mesmo tempo, há um Brasil que não pode parar. Logística, energia, indústria, varejo, serviços essenciais. Não há como operar um país continental sem escalas rotativas. A discussão, portanto, não deveria ser sobre manter ou abolir o 6×1, mas sobre criar modelos de trabalho que façam sentido para quem vive dentro dele. Algo que seja, ao mesmo tempo, economicamente eficiente e humanamente digno.
O futuro exige essa reconciliação. E exige que seja feita com frieza analítica, mas também com imaginação civilizatória. O que estamos vendo não é uma crise temporária. É o início de uma reorganização profunda, semelhante à que ocorreu quando a internet introduziu o trabalho remoto, alterando para sempre o eixo entre tempo, lugar e produtividade. O Brasil está diante de um momento decisivo para redesenhar sua relação com o trabalho antes que a falta de mão de obra se torne um gargalo inevitável ao crescimento.
Se o Brasil deseja superar a falta de mão de obra sem cair em soluções improvisadas, precisa aprender com países que enfrentaram o mesmo fenômeno muito antes de nós. Não existe nada de “exótico” no que estamos vivendo. Japão, Coreia do Sul, Alemanha, Holanda e Estados Unidos passaram por ondas semelhantes, cada qual com suas estratégias. O padrão comum entre eles é simples: não tentaram convencer as pessoas a desejar o modelo antigo. Criaram um modelo novo.
O Brasil tenta fazer o contrário. Insiste em adaptar pessoas ao trabalho, quando deveria adaptar o trabalho às pessoas. A correção desse eixo já começou em pequenas empresas que adotaram escalas híbridas, semanas comprimidas, jornadas adaptativas e modelos de contratação flexíveis sem precarização. Mas isso ainda é exceção. O futuro exige que seja regra.
Uma solução de impacto imediato é a jornada 4×3 em setores que permitem revezamento, inspirada em modelos canadenses e nórdicos. O trabalhador concentra a carga semanal em quatro dias e descansa três. Isso reduz absenteísmo, melhora saúde mental, estabiliza equipes e elimina parte da rotatividade. Países que testaram o modelo observaram aumento real de produtividade, mesmo sem redução salarial. No Brasil, onde o deslocamento diário é um fator crítico, essa mudança altera a equação de forma radical. Um dia a menos de transporte já é, para muitos, um ganho de vida.
Outra abordagem é a redistribuição regional da mão de obra por meio de incentivos à migração interna planejada. Não se trata de repetir programas antiquados, mas de criar ambientes realmente habitáveis longe das capitais hipercongestionadas. As cidades médias brasileiras são o maior ativo não explorado do país. Custos mais baixos, melhor qualidade de vida, menor violência, mais espaço, menos ruído. Empresas já começam a perceber que recrutar em Belo Horizonte ou Joinville é mais fácil do que recrutar em São Paulo, e recrutar no interior de Minas é mais fácil ainda. A lógica é clara: quando a vida melhora, o trabalho volta a fazer sentido.

A digitalização amplia esse movimento. Portugal, Estônia e Finlândia provaram que é possível formar mão de obra qualificada sem pedir que as pessoas atravessem a cidade todos os dias. O Brasil ainda está preso a uma mentalidade escolar-industrial do século passado. Cursos técnicos híbridos, capacitação remota com tutores reais, micro certificações de seis semanas e programas de aprendizagem guiados por inteligência artificial já resolveram o problema da escassez de trabalhadores em vários países europeus. Aqui, o gargalo não é tecnológico. É mental. Falta ousar.
Mas talvez a virada mais importante seja cultural. O trabalhador brasileiro percebeu que o tempo é o recurso mais escasso da vida. E a forma como o país administra esse recurso ainda é primitiva. Metade da tensão atual entre empresas e trabalhadores nasce de uma única trajetória: a escravidão urbana. A lógica do “acorda, corre, trabalha, retorna exausto, dorme” se tornou insustentável para quem deseja construir família, estudar, empreender, viver plenamente. A descralização urbana, que você e eu discutimos há meses, não é um devaneio filosófico. É uma necessidade econômica. A modernidade não cabe mais dentro das capitais brasileiras. Elas ficaram densas demais para comportar uma vida humana estável.
Cidades menores, conectadas por fibra óptica, com ecossistemas locais de trabalho híbrido e serviços próximos, são o futuro. Quando o trabalhador mora a dez minutos do emprego, a jornada 6×1 deixa de ser um castigo social e volta a ser uma escala operacional. Quando mora a duas horas, ela vira um símbolo de punição. A solução nunca esteve na jornada. Sempre esteve na distância.
A automação também precisa entrar no debate com maturidade. Não para substituir pessoas, mas para substituir tarefas que afastam pessoas. Japão e Alemanha resolveram a escassez laboral automatizando funções de baixa atratividade, liberando seres humanos para atividades de maior valor. O Brasil tenta resolver a escassez mantendo tudo como era. É uma equação impossível. Quando uma padaria coloca um sistema automatizado de preparo parcial, não está tirando empregos. Está garantindo que conseguirá contratar gente para funções que exigem presença humana.
A solução verdadeira nasce da convergência: novas jornadas, redução estrutural de deslocamentos, qualificação contínua, automação estratégica e incentivo real para que as pessoas vivam onde possam florescer. Quando articulados, esses elementos criam algo que falta ao Brasil: propósito compartilhado. Sem isso, nenhuma empresa conseguirá atrair mão de obra de forma sustentável, por mais benefícios que ofereça.
O país está numa encruzilhada. Ou reencontra o sentido do trabalho agora, ou verá sua economia crescer cercada por empresas incapazes de operar plenamente. A boa notícia é que a direção já está no horizonte. Quem observa o movimento das pessoas percebe antes do governo, antes das instituições, antes dos próprios empresários: o futuro brasileiro se desloca para o interior. É para lá que as famílias fogem do caos. É para lá que o trabalho remoto encontra espaço. É para lá que a produtividade renasce. E é de lá que virá a recomposição da mão de obra.

Para o trabalhador comum, o norte é claro. Buscar cidades menores quando possível. Valorizar ocupações que permitam autonomia. Usar a tecnologia para qualificação contínua. Reivindicar jornadas que respeitem o tempo. E construir uma vida que não dependa do colapso urbano para existir.
Para as empresas, a resposta também é evidente. Redesenhar jornadas. Criar real flexibilidade. Abrir polos regionais. Automatizar o que afasta e humanizar o que atrai. Alinhar expectativas com o mundo que existe, não com o que já passou.
O Brasil ainda está a tempo de reescrever sua relação com o trabalho. E quando fizer isso, descobrirá algo que parecia distante: não faltava gente. Faltava futuro.
Texto Original: Lizandro Rosberg
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